domingo, 11 de maio de 2008

Análise de Caso 001_2008

Título: O Avião de Peças Lego
Fonte: Livro Wikinomics: Como A Colaboração Em Massa Pode Mudar O Seu Negócio (pgs 273 a 280)
Autores: Don Tapscott & Anthony D. Williams
Editora: Nova Fronteira
Captado Por: Mauro Cesar Leite de Oliveira


Phil Condit, ex-CEO da Boeing, costuma explicar que os aviões modernos exigem substituição contínua de várias peças para se manterem operacionais dizendo que “um Boeing 757 é basicamente um monte de peças voando juntas em uma formação rígida”. Para a próxima geração de aeronaves, as palavras dele soam ainda mais verdadeiras. Esses aviões são basicamente uns montes de peças Lego desde o início – fornecidas por centenas de empresas diferentes e montadas em um chão de fábrica global, em uma gigantesca e impressionante colaboração.

Eis o que está acontecendo: a inovação da indústria aeroespacial e de defesa (A&D) é praticamente a mais complexa e cara que existe. Assim como as companhias de outros setores fortemente dependentes de P&D, as empresa de A&D estão descobrindo que simplesmente não conseguem acessar ou possuir todo o conhecimento necessário para competir. Na verdade, uma equipe global de design e desenvolvimento é cada vez mais um requisito básico para que a sua empresa simplesmente se mantenha em funcionamento.

Ao mesmo tempo, as empresas de A&D precisam ser implacáveis em sua tentativa de enfrentar desafios de engenharia progressivamente mais complexos sem aumentar os custos. As companhias aéreas estão sempre perdendo dinheiro; então, qualquer medida que os fabricantes de aviões puderem tomar para reduzir custos fará com que se tornem parceiros mais atraentes. Empresas de ponta no setor de A&D estão reagindo com estruturas operacionais globais, flexíveis e ágeis que permitem inovação contínua, maior eficiência e custos baixos.

Algumas empresas pensam e agem globalmente, entrando no jogo de fusões e aquisições (F&A) – compram companhias que têm as capacidades de que necessitam e que administram boa parte da sua inovação internamente. Porém, até mesmo os planos mais bem arquitetados de F&A acarretam conhecidos problemas de integração e arcam com custos consideráveis para as operações cotidianas.

Outras empresas, como a Boeing, estão na direção oposta: livram-se dos ativos não-centrais e optam por colaborar com redes de valor globais e livremente associadas. Em vez da velha relação hierárquica produtor-fornecedor, as principais empresas (integradoras de sistemas primários, em jargão técnico) e seus parceiros compartilham os custos e riscos de grandes projetos de desenvolvimento ao longo de todo o ciclo de vida de novos produtos, colaborando em tudo, desde o design e a fabricação até a manutenção e o suporte de longo prazo. A abordagem colaborativa permite que as empresas explorem as melhores capacidades sem as dores de cabeça da aquisição plena. As empresas líderes realizam cada vez menos processos de fabricação e se concentram nos sistemas e processos de design e na orquestração da colaboração.

Para a Boeing, a mudança faz parte de um longo e doloroso processo para se transformar em um concorrente mais enxuto e focado. Diante do duplo golpe da estabilidade crescente na indústria de aviões comerciais depois do 11 de Setembro e de uma queda acentuada nas vendas e na participação de mercado, a Boeing foi forçada a revisar sua maneira de fazer negócios. Ela está adotando a colaboração em massa – dando aos fornecedores controle sobre uma grande parte dos milhares de recursos e componentes que constituem seus aviões, em uma tentativa de controlar custos, melhorar a inovação e comercializar mais rapidamente novos aviões. Os parceiros participam do design e da construção do avião da mesma forma que os programadores no sistema operacional Linux. Enquanto abre mão de uma parte significativa do que antigamente era sua principal competência industrial, a Boeing está estabelecendo uma nova competência na administração de uma base de parceiros estendida por todo o globo. Ao fazer isso, a empresa está usando as últimas tecnologias de colaboração para transformar um conjunto tradicional de fornecedores em uma organização colaborativa. O resultado é o desenvolvimento do revolucionário 787 Dreamliner, cujas vendas iniciais e eficiência de custos prenunciam um futuro brilhante para um colosso que passava por dificuldades.

Embora o elegante e econômico 787 seja uma vitrine de novas tecnologias, a verdadeira história está em como o avião foi criado. Seu desenvolvimento alçou o papel da Boeing como integradora de sistemas e um patamar mais elevado: construir uma aeronave de nova geração com mais de cem fornecedores em seis países diferentes de maneira verdadeiramente colaborativa.

Não se trata de uma simples terceirização – a Boeing já fez muito disso no passado. Dessa vez, ela construiu uma ampla rede horizontal de parceiros que estão colaborando em tempo real, compartilhando riscos e conhecimentos para alcançar um nível mais alto de desempenho. Abertura significa explorar as melhores idéias e capacidades em todo o setor. Isso é uma transformação gigantesca para uma empresa acostumada a trabalhar de maneira absolutamente sigilosa e hierárquica.

No passado, os parceiros e fornecedores da Boeing só se juntavam à equipe de desenvolvimento no último estágio de uma fase de design detalhado. A empresa projetava as especificações e a tarefa do fornecedor era implementá-las. Tudo era enviado à fábrica da Boeing em Washington. Se as peças não se encaixassem, tinha de ser reconstruídas. Até que o processo de montagem fosse finalizado, sucessivas iterações de seus aviões eram construídas e refinadas no local com equipes de todo o mundo.

O novo modelo da Boeing trata os fornecedores como verdadeiros parceiros e até mesmo como colaboradores (peers), introduzindo-os muito mais cedo no processo. De fato, antes mesmo de o programa do 787 ser anunciado, a Boeing estava reunindo uma equipe internacional de empresas do setor aeroespacial para traçar planos para o novo modelo. “Tínhamos aqui mais de mil pessoas das equipes de engenharia dos nossos parceiros para, juntos, definirmos o avião”, disse Mike Bair, que chefia o programa do 787 para a Boeing. “Dessa maneira, recebemos as melhores idéias de todos, e não apenas as nossas.”.

O aprofundamento do envolvimento dos fornecedores aumentou significativamente a eficiência no processo de design. Bair explica que, quando a Boeing enviava para os fornecedores especificações de dispositivos eletrônicos do 777 (o predecessor do 787), o documento tinha 2.500 páginas. “Eles não tinham muito a imaginar”, afirmou. “Nós lhes dizíamos exatamente o que queríamos com um detalhamento torturante.”. O documento equivalente com as especificações do 787 tem apenas 20 páginas.

“Percebemos que é mais eficaz quando as pessoas que estão construindo as peças também fazem a engenharia”, diz Blair. “Eles sabem melhor do que nós como suas fábricas funcionam, e achar que podemos projetar uma peça que não apenas satisfaz as nossas necessidades, mas que também é a mais eficiente para a produção deles, seria pura adivinhação da nossa parte.”.

A turbina, por exemplo, está sendo desenvolvida em parceria com a General Eletric e a Rolls-Royce. Mais de vinte fornecedores internacionais de sistemas (que vão desde grandes nomes, como a BAE no Reino Unido e a Matsushita no Japão, até a Honeywell, a Rockwell Collins e a General Dynamics nos Estados Unidos) trabalharão com a equipe da Boeing para desenvolver tecnologias e conceitos de design para muitos sistemas e submontagens. À medida que o trabalho de design e desenvolvimento se aproximar do fim, as mesmas empresas competirão para se tornarem fornecedores constantes do programa.

Até mesmo passageiros em potencial foram convidados para se juntar à equipe mundial de design. Quando a Boeing lançou um site para promover o 787, incluiu uma seção para que entusiastas de aviação e outros interessados descrevessem os recursos que gostariam de ver em um avião ideal.

A fabricação também é colaborativa. Na época em que construiu o 777, a Boeing reuniu todos os 12 mil componentes no final do projeto e montou o avião em sua fábrica em Everett, Washington. Dessa vez, os funcionários da Boeing encaixarão grandes componentes e submontagens como se fossem peças Lego, em vez de rebitar e soldar por inteiro o avião de alumínio. A abordagem modular permitirá à Boeing reduzir o processo de montagem final dos 13 a 17 dias necessários para o 777 para 3 dias no caso do 787.

Como se constrói um avião em 3 dias? Muitas das submontagens – de fato, de 70% a 80% do novo avião – serão inteiramente projetadas e fabricadas por parceiros que provêm de várias partes do globo. O estabilizador vertical, por exemplo, virá de unidades da Boeing em Frederickson, Washington; os bordos de ataque e os flapes das asas, de Tulsa, Oklahoma; a cabine de comando e a seção anterior da fuselagem, de Wichita, Kansas; os bordos de fuga móveis, da Austrália; e a carenagem da asa até a fuselagem, de Winnipeg, Canadá.

Parceiros japoneses, que incluem a Fuji, a Kawasaki e a Mitsubushi, estão se encarregando de 35% da estrutura total do 787, concentrando-se nas asas e na parte central da fuselagem. A Vought Aircraft Industries de Dallas, EUA, e a Alenia Aeronáutica, da Itália, também estão envolvidas, depois de terem formado uma joint-venture para fornecer a seção posterior do avião.

No total, trata-se de um enorme desafio tecnológico e humano para reunir uma equipe tão diversa e globalmente distribuída de designers e fabricantes em um projeto de desenvolvimento altamente complexo e estruturado. Por baixo dessa rede, está um sistema de colaboração em tempo real criado pela Boeing e a Dassault Systèmes chamado Global Collaborative Environment. Esse sistema de ponta conecta todos os vários parceiros a uma plataforma de ferramentas de gerenciamento de ciclo de vida do produto e a um conjunto de dados sobre design.

Não é mais necessário ficar trocando desenho entre as equipes de engenharia e design. Qualquer membro, de qualquer equipe, em qualquer parte do mundo a qualquer momento pode acessar, analisar e revisar os mesmos desenhos e simulações enquanto o software rastreia as revisões. Os gerentes que não são da área de engenharia também podem participar da ação. Visualizadores simplificados permitem que todos, desde os executivos do marketing até os contadores, analisem e comentem os planos à medida que progridem, garantindo que o design final seja realizado no contexto mais amplo possível.

Com mais dados dos fornecedores e ferramentas de software mais sofisticados à disposição, o próprio processo de design virtual se tornou muito mais sofisticados do que as ferramentas usadas para projetar o 777. Marcelo Lemos, presidente da Dassault Systèmes (a parceira da Boeing para softwares) explica: “Estamos indo além da modelagem digital de peças estatísticas e da geometria. Estamos passando para o comportamento mecânico do avião ao longo do seu ciclo de vida, incluindo as suas operações e manutenção.”.

Na fase de projeto, esse processo permite que vários participantes do ecossistema Boeing testem como seus componentes funcionarão juntos em simulações em tempo real. Isso, por sua vez, significa que componentes que costumavam ser projetados em série agora podem ser projetados simultaneamente. Colaboração e design simultâneos estão reduzindo significativamente o tempo e os custos.

Vejamos as asas do 787, que a Boeing está criando em parceria com a japonesa Mitsubishi Heavy Industries. Elas são totalmente feitas de materiais compostos, uma novidade para uma indústria que, tradicionalmente, tem usado alumínio. Materiais compostos leves ajudarão significativamente a eficiência do 787 em termos de consumo de combustível, mas apresentaram importantes desafios de engenharia e integração para os engenheiros da Boeing e da Mitsubishi. A equipe teve de desenvolver novas ferramentas e processos de engenharia, além de novas tecnologias e ferramentas de fabricação para produzir os novos materiais de maneira econômica. Normalmente, um processo de engenharia em série levaria cerca de seis meses. Mas todos esses processos foram realizados paralelamente, usando novas ferramentas de modelagem digital, em apenas seis semanas.

O Boeing 787 também vai incluir um sistema que permitirá que o avião se auto-monitore, alerte ao pessoal de bordo sobre possíveis problemas em tempo real e indique sistemas computadorizados no solo ações de manutenção necessárias. Se, por exemplo, existe um problema na asa, sistemas inteligentes detectarão padrões anormais de vibração e alertarão a tripulação e o pessoal de solo para que possam agir.

Quando problemas desse tipo surgiam antigamente, os pilotos tinham de aterrisar o avião na primeira oportunidade e chamar um engenheiro para fazer uma inspeção visual, decidindo se o vôo prosseguiria ou se uma equipe de mecânicos deveria ser chamada. Agora, os engenheiros no solo podem fazer um diagnóstico remoto com base nas informações enviadas via satélite. As equipes de solo podem ser mobilizadas e as peças encomendadas bem antes do avião aterrissar. Isso poupa tempo precioso, o que na aviação comercial significa poupar dinheiro. A Boeing estima que o monitoramento remoto reduzirá os custos de manutenção em 30%.

Mais do que as questões de tecnologia, talvez sejam as necessidades de gerenciamento da propriedade intelectual e do conhecimento que apresentam alguns dos maiores obstáculos para a colaboração efetiva. “Esse projeto precisa de colaboração em seu nível mais profundo e, para que isso dê certo”, diz Lemos, da Dassault, “temos que encontrar a mistura certa entre a quantidade de conhecimento que deve ser agregada como propriedade de conhecimento que deve ser agregada como propriedade exclusiva e a quantidade que será compartilhada.”.

A maioria das empresas fica compreensivelmente nervosa quando o assunto é proteger seus projetos e processos exclusivos. Mas, nesse projeto, o compartilhamento da quantidade de informação certa sobre projetos e métodos é o que fará a diferença entre êxito e fracasso. “Trata-se do gerenciamento, do início ao fim, de dados associados ao avião”, diz Blair. “Reter dados e não ser franco em relação à sua posição e ao que está acontecendo é um comportamento inaceitável. Tudo está às claras aqui. Compartilhamos tudo.”, acrescenta.

Alguns engenheiros dentro da organização se preocupam porque acham que parcerias abrangentes e compartilhamento de dados podem fazer com que a Boeing perca sua vantagem na engenharia. Há o risco de uma quantidade excessiva de know-how vazar para os parceiros e/ou dar origem a um novo e poderoso concorrente. A indústria aeroespacial japonesa, por exemplo, tem procurado há muito tempo o conhecimento para produzir seus próprios aviões. Contratos anteriores forneceram a maior parte know-how, mas empresas como a Mitsubishi e a Kawasaki ainda não dispõem da proeza técnica para desenvolver as asas. Através da colaboração com a Boeing, os japoneses podem obter o ingrediente que lhes falta.

Apesar de o vazamento de conhecimento ser um risco em qualquer parceria, trata-se de uma contrapartida que as empresas podem gerenciar a fim de colher os benefícios da especialização e da colaboração em termos de eficiência. “Ficamos com um pouquinho de tudo só por uma questão de experiência”, diz Blair. A Boeing, por exemplo, optou por continuar realizando internamente o projeto e construção do estabilizador vertical. “Acabamos ficando com uma mão-de-obra menor, mais capaz e mais estável”, diz Blair. “Depois, procuramos outras pessoas que possuem mais capacidade para aquelas partes detalhadas do avião.”.

Administrar essas questão faz parte do novo papel da Boeing como líder do chão de fábrica global. “Você precisa ser capaz de entender o mercado, transformar isso em exigências, integrar os parceiros e as peças para satisfazê-las e dar suporte em serviços”, diz Blair. “O conhecimento que ganhamos ao organizar esse programa é uma competência única. Acho que não existe mais ninguém capaz de fazer isso, e nós o faremos novamente em algum momento, em um novo programa para outro avião. E então, seremos muito melhores.”.

A mudança de cultura com a passagem do papel de fabricante de aviões para integradora de sistemas nem sempre foi fácil. “Existe o perigo real de microgerenciarmos o processo”, diz Blair. “Depois de nossos parceiros chegarem ao ponto em que temos um plano que funciona, o verdadeiro desafio é se distanciar, deixar que todos façam o seu trabalho sem nossa intromissão.”. Mesmo assim, apesar de às vezes ser um desafio, combinar talentos de todo o mundo é uma clara fonte de força.

Parte por parte, o projeto 787 já é um sucesso em vários aspectos. A maior parte do trabalho de design já está completa e a fabricação está em curso. A boa nova para a Boeing é que as companhias aéreas finalmente aceitaram o 787 depois de um início lento no que diz respeito às vendas. Em 2005, a Boeing recebeu 354 pedidos com um valor total de mais de US$46 bilhões, ultrapassando a Airbus pela primeira vez desde 2000 em número de encomendas de novos aviões. No entanto, maior recompensa para a Boeing reside na legitimação de um novo modelo de negócios construído em torno da colaboração global. O 787 foi uma aposta e, com tantos parceiros dividindo tanta responsabilidade, nunca existiu a certeza do sucesso. A empresa apostou seu futuro no peering e, em vista das vendas do novo 787 Dreamliner, o resultado tem sido positivo.

Nenhum comentário: